Já existem muitas críticas bem elaboradas sobre a maneira como a escola brasileira vem, tradicionalmente, organizando sua agenda a partir de datas comemorativas, geralmente trabalhadas de maneira descontextualizada e mecânica – ou seja, vazia de sentidos e significados para as crianças. Mas, à medida que nos aproximamos do mês de abril e do conhecido “Dia do Índio”, sinto que ainda há reflexões a serem feitas, ainda precisamos mexer nessa ferida! Citando uma fala recorrente do escritor e educador indígena Daniel Munduruku: “o Brasil precisa olhar para o seu passado e se reconciliar com ele, e o passado do Brasil é indígena e negro”.
Escrevo este ensaio reflexivo como um convite para que mais educadores e educadoras não indígenas olhem para essa temática, para que, juntos, possamos encarar nossos desconhecimentos e preconceitos e, a partir disso, repensarmos nossa prática docente. A questão que guiará nossa reflexão é: Será que temos algo para comemorar no dia 19 de abril?
Numa tentativa de organizar minhas ideias e aproveitar bem esse espaço de compartilhamento de conhecimento e reflexões, esse manuscrito foi organizado em três etapas. Em um primeiro momento, discorro sobre a colonização, sobre a ferida colonial e também sobre como o arquétipo do “Índio” que conhecemos hoje foi construído pelo estado brasileiro. Em seguida, argumento que os educadores precisam escutar os povos indígenas e a partir disso, reconstruir suas práticas. Por fim, celebro a esperança (do verbo esperançar) de uma sala de aula intercultural, fundamentada nos princípios do diálogo e da interculturalidade.
Parte 1. Sobre desencontros, inverdades e desconhecimento
Em pleno 2022 ainda há quem sustente a narrativa do “descobrimento” do Brasil. Precisamos falar sobre isso e, como educadores, entendermos a importância de proferirmos as palavras certas. Munduruku (2017, p. 14) nos lembra que: “as palavras têm um poder enorme de moldar a mente das pessoas. Elas servem para alçar, elevar, dignificar, mas, em contrapartida, podem detonar, humilhar e desqualificar pessoas, povos, grupos e civilizações”. Dito isso, o autor defende que é possível transformar as relações humanas a partir da escolha das palavras certas. Vamos seguir conversando e logo perceberemos como algumas palavras moldaram nosso pensamento em relação aos povos indígenas e como podemos, com algum esforço, desentortar nossa mente. Mas, por hora, voltemos à história do Brasil.
O Brasil foi invadido, quando os Portugueses chegaram nessas terras, já haviam povos que aqui habitavam e, se hoje esses povos continuam lutando por parte de suas terras e pela preservação de suas culturas, é porque foram roubados. Por mais que essa parte da história tenha sido varrida para debaixo do tapete, as palavras que representam a colonização das terras brasileiras são: violência, massacre, destruição, genocídio, etnocídio, entre outras, que carregam o mesmo peso, a mesma dor. Não podemos fechar nossos olhos para a ferida colonial, ou seja, para as marcas profundas que ficaram nos povos que passaram pela terrível experiência da colonização, pois só assim poderemos compreender as relações de dominação que perduram até os dias atuais.
Existem relatos que afirmam que os portugueses chegaram a essas terras doentes e famintos e que receberam ajuda dos povos originários. Além disso, fazia parte da cultura de algumas etnias se associarem com outros grupos com o objetivo de estabelecer trocas comerciais ou para firmar alianças para guerrear com povos adversários. Esses acordos duraram por um tempo, mas com o passar dos anos, os povos originários compreenderam que a intenção dos portugueses não era uma relação igualitária, mas estavam interessados em dominar, escravizar, saquear e extorquir.
A partir daí, os povos indígenas iniciaram movimentos de resistência e então, aconteceu um dos maiores genocídios da história da humanidade. Muitas etnias foram dizimadas. De acordo com Munduruku (2009), estima-se que, na região brasileira, viviam em torno de mil povos, que formavam uma população de aproximadamente cinco milhões de pessoas. Havia, também, diversidade de línguas: acredita-se que eram faladas cerca de 1.100 línguas e dialetos.
Por que essa parte da história não nos foi contada em nossa época de escola? Porque as narrativas são construídas pela perspectiva do “vencedor”. Assim, perpetuou-se a narrativa do descobrimento e dos indígenas trocando as terras por espelhos. Mas mesmo com toda investida portuguesa, os indígenas permaneceram resistindo e encontrando formas de preservar suas culturas, seus modos de viver, sentir e existir.
Em relação à força das narrativas, também convoco-vos a pensar sobre essa imagem mental que temos do “índio”. Que imagem vem à nossa mente quando a palavra “índio” é proferida? Muito provavelmente, venha à nossa mente, uma imagem que foi construída no período do reinado de D. Pedro II, quando o estado brasileiro criou o arquétipo do índio romantizado como um símbolo do nacionalismo. Essa narrativa foi muito bem elaborada e divulgada na literatura, como nas obras José de Alencar e Gonçalves Dias, em obras de arte e em discursos políticos. Mas qual o problema com esse arquétipo?
A conversa é longa, mas vou citar alguns. Para começar, não existe “o índio”, há muitos povos indígenas que vivem no Brasil e eles se diferem em suas culturas. A narrativa elaborada pelo estado brasileiro também apresentava o indígena como um representante de um passado exótico do Brasil – um passado superado – e essa é uma crença que perdura até hoje. Contudo, precisamos entender que os povos indígenas não vivem no passado, suas culturas são atuais e contemporâneas. Além disso, o fato de não se enquadrarem nos padrões ocidentais não os caracteriza como exóticos. Entre esses estereótipos, existem outros como: preguiçosos, selvagens ou inimigos do desenvolvimento.
Lembram desta música de Rita Lee? “Se Deus quiser/Um dia eu quero ser índio/ Viver pelado, pintado de verde/ Num eterno domingo/ Ser um bicho preguiça/ Espantar turista/ E tomar banho de sol/ Banho de sol, banho de sol, sol” (RITA LEE, 1980). Quantos estereótipos é possível encontrar nessa canção?
Esses estereótipos promovem distorções e apagamentos sobre os conhecimentos a respeito das culturas indígenas. Nesse sentido, a autora Chimamanda Ngozi Adichie (2019) afirma que uma narrativa incompleta e empobrecida a respeito de um povo gera uma história única sobre ele, impedindo que as culturas desses povos sejam conhecidas, com toda sua complexidade e riqueza.
Aqui, começamos a compreender o papel fundamental da educação. É no ambiente escolar que podemos construir uma sociedade mais tolerante e respeitosa com as diferenças, mais do que isso, é onde podemos formar sujeitos que veem valor na diversidade. No entanto, infelizmente, muitas das práticas escolares e dos materiais didáticos que circulam nas escolas, sobre as culturas indígenas, as tornam reprodutoras de estereótipos e preconceitos (GOMES; SILVA; CASAGRANDE, 2020). Para que isso possa mudar, precisamos desentortar nosso pensamento e reconstruir nossa prática pedagógica. Vejamos como podemos começar esse movimento.
Parte 2. Desentortando o pensamento
Atualmente, vivem 305 povos indígenas conhecidos no Brasil, cada um com sua própria cultura. Além disso, existem em nosso país, 274 línguas e dialetos falados ainda hoje. Diante dessa informação, podemos nos questionar: com tantas etnias e culturas distintas, como podemos trazer os conhecimentos desses povos para dentro da sala de aula?
A resposta é simples, mas não necessariamente seja uma atitude fácil. Primeiramente, precisamos ouvir! Sim, ouvir. Os povos indígenas aprenderam a Língua Portuguesa e hoje escrevem livros, artigos, músicas, fazem palestras, criam conteúdo digital, ou seja, existem muitas fontes de autoria indígena para serem consultadas. Muitos indígenas estão dispostos a compartilhar seus conhecimentos conosco, estão abertos e prontos para reencantar nossas relações através do diálogo e do exercício da interculturalidade. Não há motivos para ficarmos presos aos nossos preconceitos e continuarmos reproduzindo estereótipos em sala de aula.
Recentemente, participei da escrita de um texto intitulado: “Pode o branco ouvir?” (FLORES; CASAGRANDE, 2022), este título revela uma reflexão que me acompanha desde que iniciei minhas pesquisas sobre essa temática. No pouco tempo que tenho me dedicado a conhecer um pouco da cosmovisão dos povos ameríndios, tenho encontrado tanto material, de altíssima qualidade, que não consegui dar conta nem de uma pequena parte de tudo o que eu gostaria. A verdade é que os povos indígenas têm empregado um grande esforço para falar conosco, o que falta para que comecemos a ouvi-los?
É verdade que pouquíssimos de nós tiveram acesso a essas discussões durante a sua formação acadêmica. Por isso, defendo a necessidade de pesquisa e formação continuada por parte dos educadores. Com um pouco de dedicação, é possível encontrar, na internet, livros, artigos, obras de arte, filmes, palestras e cursos de autoria indígena, o estudo desses materiais pode ser uma excelente alternativa para suprir, até certo ponto, as lacunas deixadas pela formação inicial do professor.
Parte 3. O encantamento pela diferença: a sala de aula intercultural
Falamos muito sobre tolerância e respeito e isso é excelente. Mas hoje quero ser um pouco mais ousada, mais do que uma sala de aula em que os alunos respeitem o próximo, gostaria de pensar que é possível construir uma comunidade de aprendizagem que celebre a diversidade. Quero esperançar a sala de aula como um espaço onde a diferença possa ser vista como um valor, como uma oportunidade para ampliarmos nosso sentido de mundo.
O conceito de interculturalidade traz a ideia de um espaço de diálogo onde seja possível o compartilhamento entre seres e saberes, significados e práticas. Não consigo pensar em um espaço melhor que a escola para que isso aconteça. Hermann (2002, p. 95) afirma que “a educação é, por excelência, o lugar do diálogo, portanto, o lugar da palavra e da reflexão que ultrapassa a apropriação dos conhecimentos para nos conduzir à formação pessoal”. Nesse sentido, a educação escolar tem um papel fundamental na construção de uma sociedade intercultural, onde várias culturas possam conviver em uma relação horizontal, ou seja, sem que uma se considere superior e imponha seus saberes e modo de viver sobre as outras.
Feitas essas reflexões, retorno à questão: o que temos a comemorar no dia 19 de abril? Bem, se pensarmos em todo o contexto de violência que os povos indígenas brasileiros têm enfrentado, desde a colonização, não temos nada a celebrar. Esse dia, inventado pelos brancos, para comemorar o arquétipo de um índio romantizado e irreal, precisa ser desconstruído, especialmente pela escola, que teima em fechar os olhos para esse debate.
O Dia do Índio já foi resignificado pelos povos originários brasileiros, que hoje falam em abril como um mês de luta e resistência e nós, educadores não indígenas temos tudo a ver com isso, pois podemos estar ao lado desses povos na luta antirracista. Podemos colaborar para a desconstrução de estereótipos e preconceitos. Podemos contribuir na luta contra o apagamento e as invisibilidades das culturas indígenas. Podemos inspirar nossos alunos a celebrar a diversidade. Sim, nós podemos.
* Cristine Gabriela de Campos Flores é Doutora em Educação pela Universidade La Salle
Temáticas de atuação/pesquisa: Saberes decoloniais, temática indígena na sala de aula, interculturalidade na escola, literatura indígena para, crianças. Diversidade Étnico-racial, Currículo e Prática de Ensino na Educação Básica.
Referências
ADICHE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FLORES, C. G. C; CASAGRANDE, C. A. PODE O BRANCO OUVIR? O diálogo intercultural na pesquisa acadêmica. In: Gilberto Ferreira da Silva. (Org.). DA DESCOLONIZAÇÃO À DESCOLONIALIDADE: fazeres/pensares em educação. 1 ed. Curitiba: Editora CRV, 2022, v. 1, p. 87-101.
GOMES, L. B., SILVA, D. R. Q., & CASAGRANDE, C. A. (2020). A representação dos povos indígenas contemporâneos nos livros didáticos. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 28(75). https://doi.org/10.14507/epaa.28.4754 Este artigo faz parte do dossiê especial, Educação e Povos Indígenas – Identidades em Construção e Reconstrução, editado por Juliane Angnes e Kaizo Iwakami Beltrao.
HERMANN, N. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MUNDURUKU, D. Mundurukando 2: Sobre vivências, piolhos e afetos: roda de conversa com educadores. Lorena: UK’A Editorial, 2017.
Imagem destacada disponível em https://pixabay.com/pt/photos/%c3%adndios-embu-brasil-arte-251856/