Claudia A. Alves

Neoencartilhamento não existe.

Sequer a palavra encartilhamento existe.

Talvez porque não se tenha tido, ou sentido a necessidade de falar à exaustão sobre esta retomada dos antigos métodos da cartilha disfarçados de inovação pedagógica.

O fenômeno de

neo+em+cartilhar a alfabetização

colocar novamente as práticas de alfabetização em cartilha existe.

E entendemos que precisamos falar dele: nomear, questionar, desvelar…

Há coisas que parecem nutrir-se de silêncios.

Claudia Acosta Alves

Pode-se cogitar que as cartilhas utilizadas para alfabetizar representassem um material instigante para alguns alunos no século XIX? Quem sabe? Grande parte das crianças, durante um significativo período do século passado, sequer tinha a oportunidade de assistir à TV, veiculo que viabilizou a popularização das imagens em movimento e o acesso a diferentes e inusitados conteúdos. Supostamente, para muitas, a escassez de materiais para acessar conhecimentos que as transportassem para além de suas vidas cotidianas, fazia com que os conhecimentos trabalhados no ambiente escolar ganhassem, com facilidade, o status de novidade. E, em um contexto familiar no qual a oralidade fosse o instrumento quase que exclusivo de interação e informação, talvez, até mesmo as ilustrações que hoje achamos sofríveis nas cartilhas, chamassem a atenção dos alunos que eventualmente tivessem pouco contato com imagens impressas.

Ainda assim, mantenho relativa desconfiança sobre a unanimidade e a permanência desta avidez das crianças das classes populares, no século XIX, pelos textos sem sentido, pelo mecânico preenchimento de linhas e pelo ensino apartado das músicas preferidas, das cantigas de roda, das brincadeiras da infância como pega-pega, elástico, jogo de bolinha de gude, soltar pipa, etc. A despeito do fato de que parte das crianças das classes populares naquela época pouco assistia televisão – ou porque não tinha o aparelho em casa , ou porque quando o equipamento estragava o conserto não estava entre as prioridades do orçamento familiar – elas tinham, como alternativa às rotineiras tarefas de alfabetização, o pátio, as brincadeiras, os amigos e, sem dúvida, problemas extraescolares que precisavam resolver.

O difícil é crer que as crianças tivessem vez e voz para manifestar contrariedade em relação à escola; na verdade, é pouco provável que cogitassem a possibilidade de que aprender pudesse ser diferente do que o método das cartilhas propunha. Os causos sobre a escola, relatados de geração em geração, desde muito cedo, informavam aos novatos que, em se tratando de alfabetização, as coisas pouco mudavam. A cartilha Caminho Suave, utilizada no Brasil desde 1948 e que em 2019 chegou a sua 133ªedição, convertia-se em um claro exemplo dessa imutabilidade. Várias gerações dividiram, por meio da cartilha Caminho Suave, experiências de ensino muito similares entre si, ainda que sabidamente, eles possuissem demandas formativas bastante diversas.

Quais orientações pedagógicas tornavam razoável crer que as competências leitora e escritora pudessem ser as mesmas num período de mais de setenta anos?

Em 2022, esta explanação deveria ser apenas uma breve retrospectiva; uma informação que nos remetesse a uma curiosidade sobre como era a alfabetização antigamente. Porém, alguns fatos contemporâneos nos incitam a recolocar o debate sobre os métodos de ensino da leitura e escrita em pauta novamente. Atualmente, várias secretarias municipais de educação do país aderem a propostas pedagógicas didaticamente identificadas com as cartilhas. Esforçam-se para renovar a condição de imutabilidade dessas experiências de ensino. Uma continuidade que, acredito, impensável se estivéssemos nos referindo a outras áreas de conhecimento que não a educação.

Um dos méritos dos estudos sobre os currículos e métodos de ensino, realizados a partir da década de 80 por teóricos identificados com a perspectiva crítica, foi colocar em xeque o evidente afastamento entre o ensino e a vida cotidiana/real das crianças nas cartilhas de alfabetização. Como alternativa a este modelo, diversos estudos contemporâneos sobre alfabetização – letramento, processos cognitivos de aquisição das competências leitora e escritora – orientam o trabalho com a linguagem a partir de textos conectados à função social da escrita (dentre os quais, as músicas preferidas, as cantigas de roda, as brincadeiras de infância como pega-pega, elástico, jogo de bolinha de gude, soltar pipa) em substituição aos tradicionais textos escolares (“O Ivo vê a uva”, “O boi baba”, “Nena não é mole”).

Além da produção específica sobre a leitura e a escrita, as investigações realizadas pela teorização crítica sobre currículo, inspiradas na narrativa de Paulo Freire de que “educar é um ato político”, fornece contribuições importantes para o debate acerca das propostas de “neoencartilhamento” das práticas de alfabetização.  Após todas as pesquisas e discussões sobre a intencionalidade do ato educativo, não há como voltar no tempo e acreditar que a educação – seus métodos, suas técnicas – sejam neutros. Sabe-se que a educação escolarizada, desde as etapas iniciais, está inevitavelmente envolvida na construção de pessoas, cotidianos e relações sociais; função que executa, a partir da legitimação de determinadas formas de aprender a ser e estar no mundo. Resta decidir quem/o que se tem o propósito de construir desde o início da escolarização.

Próximo posts sobre alfabetização:

“Encartilhamento”: os fins justificam os meios?

Nativos digitais e “O Ivo viu a uva”: um encontro paradoxal

“Encartilhamento” deu certo: Pra quem?

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Alfabetização

Alfabetização: TRABALHO COM TEXTOS
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Para você que deseja discutir possibilidades do ensino da língua escrita pautado em práticas efetivas de uso da linguagem; ou seja, alfabetização com textos reais, este grupo de estudos é uma excelente oportunidade. São abordadas temáticas referentes ao planejamento e execução das atividades a partir de textos na alfabetização.

Psicogênese da língua escrita: contribuições e limites
Profa. Claudia Alves

Aborda os estudos desenvolvidos por Emília Ferreiro e Ana Teberosky sobre o processo de aquisição da leitura e escrita no final da década de 1970. Discute as intervenções didáticas com base no conhecimento acerca dos níveis psicogenéticos da lectoescrita.

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