Cristiane da Costa Acosta*

  

O presente artigo relata duas atividades de formação continuada realizada com profissionais de uma escola pública localizada no município de Rio grande/RS em 2021. O trabalho foi desenvolvido por meio de oficinas participativas com professores, coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais e diretores escolares. As oficinas buscaram atingir os seguintes objetivos: a) contribuir para a ampliação de conhecimentos sobre práticas pedagógicas identificadas com a Educação das Relações Étnicos Raciais- ERER, b) discutir a necessidade de preparo profissional para implementação dessas ações e c) refletir sobre o impacto dessas práticas na aprendizagem dos alunos em um contexto não formal e/ou informal.

O tema Educação das Relações Étnicos Raciais- ERER, embora muitas vezes negligenciado nas práticas de sala de aula, é de suma importância para formação de educadores e para uma educação antirracista.

A leitura de autores e pensadores sobre a Filosofia Ubuntu e experiências vivenciadas como mulher negra e professora envolvida nas pautas raciais trouxeram nuances variadas e ricas para este trabalho. Renderam momentos de ensino e aprendizagem mútuos.

A Filosofia Ubuntu é pouco conhecida, mas empiricamente utilizada em muitas esferas da sociedade, cabendo ressaltar que no momento pandêmico vivido por todos, os conceitos dessa filosofia se fazem extremamente necessários e urgentes. 

Os conceitos de acolhimento, respeito, entreajuda, partilha, comunidade, cuidado, confiança, generosidade tiveram papel primordial na atual conjuntura de pandemia. Não distante disso, nas escolas, apesar do longo tempo sem aula presencial, esses conceitos são sempre base para a construção de uma sociedade mais justa e humana. E através deste relato se procura mostrar como esses conceitos foram vivenciados. 

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

O desenvolvimento do trabalho aconteceu em meio à pandemia e foi necessário fazer adaptações de acordo com o momento vivido. As atividades escolares estavam acontecendo de forma remota e assim também aconteceram as oficinas com os professores. Foram realizadas duas oficinas, nas quais os professores participaram de forma online. Na sequência, será apresentado o passo a passo de cada uma das oficinas.

Relacionar a Filosofia Africana Ubuntu e sua aplicabilidade na educação das relações étnico raciais-ERER com a realidade diária da sociedade atual. 

PRIMEIRA OFICINA

A primeira oficina teve início com a apresentação dos participantes. Cada um falou um pouco sobre sua experiência no trabalho com as questões Étnico Raciais. Logo a seguir, foi apresentado o conceito da Filosofia Ubuntu, conforme segue: “Conceito africano: Que significa acolhimento, respeito, entreajuda, partilha, comunidade, cuidado, confiança, generosidade”.

UBUNTU

acolhimento, respeito, entreajuda, partilha, comunidade, cuidado, confiança, generosidade

Outras formas de entender a Filosofia Ubuntu

Durante a oficina foi importante esclarecer as diversas formas pelas quais se pode entender a Filosofia Ubuntu, conforme segue:

  • Para um estar bem, todos os demais ao seu redor precisam estar. Entenda e tenha isso com clareza para compreender como, de fato, é a filosofia Ubuntu;
  • A filosofia Ubuntu sinaliza que há uma interconexão entre as existências humanas;
  • É como diz um provérbio xhosa da África do Sul: “Umuntu Ngumuntu Ngabantu”. Ou seja: “Uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas”.
“Uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas”.

A Filosofia africana Ubuntu e seus diferentes campos de aplicação

Também se fez importante mencionar os campos de aplicação da Filosofia Ubuntu:

  1. Esfera política:  O conceito é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária;
  2. Poder judiciário:  A busca pelo consenso e também pela conciliação (algo estimulado);
  3. Comunidades periféricas: Associações de moradores que se unem e se mobilizam horizontalmente em prol de causas comuns para si, na promoção do bem-estar de todos;
  4. Cultos religiosos de matriz africana: As manifestações tradicionais africanas são, de modo geral, em “rodas” e quase nunca em “filas”, O simbolismo está representado aí também: todos são iguais e devem se sentir assim continuamente.

SEGUNDA OFICINA

A segunda oficina iniciou com a apresentação da origem da boneca Abayomi e posterior confecção da mesma. Para uma melhor compreensão, a professora ministrante contou a origem, conforme segue. 

Existe uma versão romantizada que fala da origem da Abayomi nos navios negreiros.  Reconhece-se a importância de tratar o lado lúdico e sensibilizador com as crianças pequenas, tratar do afeto, retratar um pouco de esperança e alegria ao abordar as questões etnico-raciais. Mas, sem dúvida, o interior dos navios negreiros não era um local convidativo a esses cuidados. Ao invés disso, representavam um espaço de muita dor que iniciava com a retirada dos escravizados do seu mundo, da sua família e dos seus costumes. Não existe registro histórico que associe a origem das bonecas ao período da escravidão. Então, qual a origem das bonecas Abayomi?

A origem do termo Abayomi vem da língua yorubá, falada pelo povo africano do Sudoeste da República Federativa da Nigéria, o qual foi trazido ao Brasil para ser escravizado; sendo designado como povo nagô, em território brasileiro. Esse termo tornou-se muito importante porque “Abayomi” significa encontro feliz ou aquela que traz felicidade. 

Lena Martins, brasileira, artesã, militante do movimento negro feminino, foi quem criou as bonecas no Brasil. Em um contexto no qual os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) estavam em plena expansão, na década de 1980, e o cargo de animador cultural era o principal mediador entre a cultura local e o contexto pedagógico. E embora existissem outras bonecas similares, a artesã desenvolveu a técnica para criação das bonecas em 1987, enquanto era coordenadora de animação cultural no CIEP Luiz Carlos Prestes, localizado na Cidade de Deus, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro.

CRIADORA DA ABAYOMI

Lena Martins, brasileira, artesã, militante do movimento negro feminino

O termo utilizado para dar nome a boneca, vindo das distantes terras africanas, foi acolhido em terras brasileiras e continuou a cumprir com sua missão de alegrar a vida das pessoas. Mas, para além disso, o trabalho de formação com Abayomi precisa destacar sua criação, realizada em meio ao movimento de mulheres negras, como instrumento de resgate da ancestralidade por meio da arte.

Bonecas Abayomi confeccionadas por alunas do MagistérioFonte: Arquivo pessoal da autora, 2018.

2.2.1 Sugestão de material para trabalhar em sala de aula 

Após a confecção das bonecas Abayomi, a ministrante apresentou algumas sugestões de histórias que os professores poderiam utilizar em sala de aula, visando trabalhar os conceitos propagados pela Filosofia Ubuntu:

  • Galinha ruiva;
  • Gente bem diferente;
  • Contos africanos;
  • O maluquinho da bola;
  • Cabelo de Lelê;
  • Minha mãe é preta sim;
  • As bonecas da Vó Maria;
  • Pequeno príncipe preto;
  • Bonequinha preta;
  • Pássaro sem cor;
  • Do que gosto em mim;
  • As famílias do mundinho.

  Após as sugestões, foram realizadas as seguintes atividades de fechamento:

  1.  Conversa sobre a Filosofia Ubuntu e a utilização da boneca como ferramenta de trabalho na Educação Antirracista;
  2. Conversa sobre a Filosofia Ubuntu;
  3. Feedback sobre a proposta das oficinas.

CONCLUSÃO

A formação continuada é uma parte importante da aprendizagem e para que ela ocorra de forma efetiva o professor precisa parar de enxergar o processo educativo como algo individualizado, que se restringe apenas ao seu conhecimento. O olhar do educador deve abranger as relações sociais da escola, a estrutura escolar e a realidade que circunda os estudantes e sua comunidade. É papel do professor planejar a aula, selecionando os “conteúdos” de ensino, estimulando a curiosidade e criatividade dos alunos, para que eles se tornem sujeitos da sua própria história, utilizando os conhecimentos da sua realidade, as experiências que tem, bem como as relações positivas que praticam no seu dia a dia. 

O trabalho desenvolvido nas oficinas aponta para a importância de se conhecer e divulgar, não apenas, uma versão da história. Perceber que durante a prática profissional os professores utilizam fundamentos teóricos que perpassam por suas próprias histórias e pelas suas “certezas”. Manter-se sempre atualizado e perceber-se como sujeito na sociedade contemporânea auxilia a reflexão sobre esse cotidiano muito diverso que interfere no trabalho docente e que está diretamente atrelado à realidade social que transcende o contexto escolar. 

Os alunos estão em constante formação, transformação e desenvolvimento. Cada fase apresenta características muito peculiares; as necessidades são diversas e prementes para a compreensão das coisas. Neste sentido, entende-se a importância do papel do professor no conhecimento integral dos alunos, nos aspectos físico, emocional, intelectual, social e humano. A garantia de uma educação inclusiva e equitativa vem das lutas diárias dos professores e de muitos personagens envolvidos na trama do fazer pedagógico. 

As Leis 10.639 e 11.645 são instrumentos teóricos e práticos que buscam essa educação inclusiva. Pedindo uma licença poética aos deficientes, pois esse é o lema dos mesmos, “NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS”.  A Cultura Africana oferece a nós educadores uma gama vasta de ensinamentos, temos muitos aspectos para ensinar, pesquisar e conhecer, tais como: Árvores do esquecimento ou Portal do esquecimento, os Griôs, o Baobá, a Capoeira e suas nuances de dança ou luta, a religiosidade, a territorialidade, a ancestralidade, a circularidade, a dança, a culinária, a língua, a organização dos quilombos, a história da Abayomi. 

Trabalhar a pluralidade ainda é um tabu em muitos espaços, há resistência em abordar este tema. Conforme Moreira e Candau

A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamado a enfrentar.

2003, p.161

Assim sendo, o diálogo, fundamental para a concretização dos ideais, é o que impulsiona o ser humano a praticar sua criticidade, refletindo o fator existencial e suas relações reais com o outro. Compreende-se que ao apresentar para o estudante a realidade, a verdade, permitimos   a análise de forma simples e suave, dos conhecimentos propostos e da realidade circundante que nos afeta e nos atravessa de várias formas. 

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi.O perigo de uma história única. Tradução: Julia     Romeu. 1ºed. São Paulo: Companhia das Letras,2019.

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra,2020.

BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,2019.

BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.

CAVALEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 6.ed.,6ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla-2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª edição revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

* Pedagoga –Educação Infantil, e Matérias Pedagógicas do curso Normal

Pós Graduada em Psicopedagogia

Professora de Educação Infantil, Anos Iniciais,

Atuou como professora do curso Normal

Supervisora e orientadora de estágio profissional/Magistério

Assessora da ERER

Atualmente assessora Pedagógica RH da 18 CRE -Rio Grande/RS

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